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SSP dificulta acesso a conteúdo de boletins de ocorrência

SSP dificulta acesso a conteúdo de boletins de ocorrência
   Pasta alega proteção de dados pessoais, mas Ouvidoria já havia emitido três pareceres favoráveis pela reprodução desses documentos; em caso inédito, departamento jurídico faz órgão da LAI mudar decisão

8:31 |ESTADÃO/Luiz Fernando Toledo e Marco Antonio Carvalho |2018JUL01|

SÃO PAULO – A Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP) está dificultando o acesso ao histórico de boletins de ocorrência. O documento, que é o primeiro relato oficial sobre qualquer fato relatado à polícia, é usado com frequência por jornalistas e pesquisadores para compreender, de forma qualitativa, qualquer tipo de crime. A medida é apurada pelo Ministério Público Estadual (MPE).

Desde junho de 2017, a pasta passou a proibir, mesmo que para fins restritos de pesquisa e reportagem, a cópia de qualquer boletim de ocorrência, sob a justificativa de que está protegendo dados pessoais. Um dos motivos alegado pelo órgão é que um portal de notícias de São Paulo teria publicado uma reportagem em que pessoas “podem ter sido identificadas através de informações pessoais.” A secretaria diz que a notícia “chamou a atenção da pasta sobre essa possibilidade (de uso indevido de dados pessoais)“.

(resposta da SSP enviada ao Ministério Público Estadual para justificar medida)

Hoje, quem quiser acessar os dados precisa comprovar que há interesse público na pesquisa, assinar um termo de responsabilidade e visualizá-los somente em um computador no interior da sede da secretaria, na capital paulista, sem possibilidade de tirar fotos ou salvar os arquivos em pen drive, ainda que somente para análise. Só se pode copiá-los à mão. Em muitos casos, há dezenas de milhares de documentos relacionados a uma só pesquisa.

Até junho do ano passado, a pasta permitia a retirada dos boletins de ocorrência se o solicitante comprovasse que utilizaria os dados para algum tipo de pesquisa de interesse público, por meio da assinatura de um termo.  Esses dados permitiram, por exemplo, que o Estado analisasse todos os casos de roubos a motoristas de Uber no fim de 2016. A reportagem revelou que, quando o aplicativo passou a aceitar pagamentos em dinheiro, crimes do tipo se multiplicaram ( Leia aqui a reportagem). Dados pessoais dessas vítimas de roubo nunca foram publicados, conforme acordado no termo de responsabilidade com a SSP.

Um dos pedidos que está sendo dificultado pela secretaria diz respeito a ocorrências de mortes cometidas por policiais em operações. A reportagem solicitou todos os boletins, de 2001 a 2017, com esses registros no intuito de entender o fenômeno, já que no ano passado a letalidade policial bateu recorde. Apesar de ter deferido o acesso, a pasta não permitiu que cópias fossem feitas e disponibilizou o horário comercial para que o repórter fosse à sede da secretaria consultar os documentos. Numa estimativa conservadora, são mais de 10 mil boletins de ocorrências, sobre os quais a análise tem de ser feita, sem possibilidade de copiar eletronicamente os dados, das 9h às 17h, com uma hora de intervalo para almoço dos servidores.

Para evitar exposição de vítimas, a SSP desenvolveu uma tecnologia de criptografia automática dos históricos, em que há substituição de nomes por caracteres “XXXX”. Em alguns casos, a ferramenta pode falhar – e por isso há necessidade de se assinar um termo do pesquisador/jornalista, se responsabilizando pela proteção das informações.

Decisões. A decisão contraria interpretações que um órgão do próprio governo já teve sobre o tema. Neste ano, a Ouvidoria Geral do Estado (OGE), órgão responsável por analisar pedidos de informação – emitiu três pareceres em favor de repórteres do Estado, garantindo que pesquisadores (incluindo jornalistas) poderiam, sim, reproduzir estes documentos, contanto que garantam que não haverá uso indevido dos dados das vítimas.  Segundo o órgão, a Lei de Acesso à Informação possibilita a “reprodução dos documentos consultados”, conforme as decisões OGE/LAI de números 241/2017, 286/2017 e 126/2018.

(decisão da Ouvidoria Geral do Estado em 2017 a um pedido de repórter do Estadão)

Mesmo assim, após mais de seis meses, os dados não foram fornecidos como pedido pelos jornalistas.

O Estado questionou a Ouvidoria no dia 2 de maio sobre se a secretaria de segurança poderia ignorar as decisões por não concordar com elas. O órgão informou que estas decisões devem ser acatadas e cumpridas e, caso contrário, faz-se uma “intervenção” junto à pasta.

 

(Respostas da Ouvidoria ao Estado)

Ainda sem resposta um mês depois, a reportagem voltou a questionar o órgão em junho, mas desta vez o tom da resposta foi diferente. “Tendo em vista que os casos envolvem relevante controvérsia jurídica, serão remetidos à Procuradoria Geral do Estado (PGE) para consulta”.

A reportagem teve acesso a uma consulta da SSP à sua equipe jurídica. Nele, o secretário Mágino Álves Barbosa Filho alega que houve, “para a mesma situação, posicionamentos díspares” da Ouvidoria e, por isso, pediu apoio jurídico para saber se deveria permitir ou não a reprodução dos documentos.

Este tipo de tramitação, em que o órgão não acata a uma decisão da instância superior na hierarquia da LAI (a Ouvidoria, neste caso) é inédito em pedidos de informação da lei 12.527/2011 em São Paulo. Para que o Estado  soubesse do parecer, foi preciso fazer outro pedido de informação, por meio da mesma legislação, já que a PGE se negou a informar os termos do documento.

(pedido do secretário Mágino Alves Barbosa Filho para não acatar decisões da Ouvidoria Geral do Estado)

Com o apelo, a PGE decidiu orientar pela negativa do fornecimento da cópia dos boletins e, com isso, mudar a interpretação da Ouvidoria, que voltou a se manifestar no dia 30 de julho à reportagem – mais de oito meses depois do pedido inicial de informações, desta vez negando o acesso com cópia dos históricos. Desta forma, os três pareceres que garantiam acesso conforme pedido perderam efeito, caso inédito na legislação e que não é previsto no texto da LAI.

Investigação. O Estado informou ao Ministério Público Estadual (MPE) sobre a proibição de reprodução dos dados determinada pela SSP, e o órgão instaurou um inquérito civil para apurar o caso, sob os cuidados do promotor Valter Foleto Santin, em 4 de dezembro de 2017.

À promotoria, a SSP afirmou que a mudança aconteceu depois de um episódio de uso dos dados de históricos de boletins de ocorrência por um portal de notícias de São Paulo que, em 2017, “publicou matéria jornalística na qual pode-se verificar que pessoas podem ter sido identificadas através de informações pessoais” obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação. A partir daí, diz a SSP, “a consulta aos históricos foi disponibilizada apenas na sede desta secretaria, na Avenida Líbero Badaró, 39, no térreo, em sala privativa.” Foi tentado um acordo com a pasta no MPE, mas o órgão se negou a mudar o posicionamento.

A mudança na interpretação da lei foi tomada sem nenhum tipo de aviso prévio, divulgação em Diário Oficial ou comunicado público. A reportagem só ficou sabendo das alterações ao solicitar, no fim do ano passado, históricos de boletins sobre diversos temas e suas cópias- e continua sem acesso aos documentos até o momento.

SSP diz que obedece a lei

Em nota, a SSP informou que “garante, ressalvados os dispositivos legais que garantem os sigilos de informações, a consulta aos históricos de boletins de ocorrência na sede da pasta.”

“O acesso às informações está condicionado ao atendimento ao ART 31 da LAI, onde o interessado deve justificar a necessidade de acesso, sendo franqueada a possibilidade após assinatura do termo de responsabilidade. Portanto, não é verdade que a secretaria dificulte o acesso às informações”, diz o órgão.

ENTENDA A LEGISLAÇÃO

A regra geral prevista na LAI para dados pessoais é de acesso restrito, com algumas exceções. Segundo o texto, só se pode ter acesso a essas informações com o objetivo de:

1) prevenção e diagnóstico médico

2) realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral

3) cumprimento de ordem judicial

4) defesa de direitos humanos

5) proteção do interesse público.

No caso dos jornalistas, a própria Ouvidoria Geral do Estado já entendeu que o trabalho da reportagem pode ser considerado um tipo de pesquisa, permitindo que os profissionais também tenham acesso a esses documentos, ainda que tendo de justificar o tipo de reportagem a ser feita.

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Jornalista - Diretor de TV - Editor -Cinegrafista - MTB: 44493-SP

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