São Paulo tem mais de 600 mil pessoas vivendo em meio ao esgoto e sem saneamento
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Na cidade mais rica do Brasil, comunidades inteiras ainda residem em meio ao esgoto
O esgoto é jogado direto no rio, que na primeira chuva mais forte invade a casa com sua água cinza, estragando os móveis e espalhando doenças. O cheiro forte e azedo é onipresente, e a visita de ratos, praticamente diária.
Assim é a vida de Maria Auxiliadora, 62. Para ela e outras milhares de famílias, isso é viver em São Paulo.
Na cidade mais rica do Brasil, comunidades inteiras ainda residem em meio ao esgoto. Excluídas de serviços básicos, pessoas como Maria Auxiliadora escancaram as contradições da capital, que aparece em sétimo lugar no ranking nacional do saneamento, enquanto deixa pelo menos 660 mil pessoas sem esgotamento sanitário –mais que toda a população de Florianópolis.
Dora, como é conhecida, mora em Chácara Três Meninas, uma favela na zona leste às margens do rio Tietê, onde vivem cerca de 3.000 famílias. Em 2019, a Folha de S.Paulo esteve no local e conversou com a profissional de reciclagem, que não tinha água encanada e esgoto.
Em meados de novembro deste ano, a reportagem voltou ao local e constatou que, de quatro anos para cá, pouca coisa mudou. A vida na comunidade segue cercada por esgoto, doenças e problemas de infraestrutura.
“Eu moro dentro do rio, mesmo”, diz Dora, soltando uma gargalhada. “Tem que brincar, dar risada, senão entra em depressão.”
A casa onde vive com o marido fica colada no Tietê, e não há sequer um barranco separando-os. O que divide a cozinha da água cinza e fétida é uma telha de amianto velha, que foi improvisada para servir de muro. Dora mexe a telha para mostrar a proximidade, e nem percebe que um rato sai correndo.
“Aqui é o rio”, diz, apontando para baixo da pia. “Quando a água vem, entra aqui. Entra rato e cobra, vem de tudo.”
Dora diz que, de 2019 para cá, a única coisa que melhorou foi a água, que passou a receber da Sabesp há poucos meses. A primeira conta emitida em seu nome foi paga em novembro: R$ 48.
Antes, um sistema de “gatos” improvisados drenava uma adutora a poucos metros da comunidade. Como o sistema era irregular, a água para beber, cozinhar e tomar banho geralmente chegava contaminada.
O esgoto, porém, continua caindo direto no Tietê, através de um cano branco que fica pendurado na parte de trás das casas.
A situação precária em Chácara Três Meninas ilustra como a cidade mais rica do país ainda mantém bolsões de excluídos do saneamento.
Segundo a Sabesp, o índice de cobertura de coleta de esgoto no município é de 94%. Como a concessionária atende aproximadamente 11 milhões de pessoas na capital, isso significa que 660 mil ainda não têm acesso ao serviço.
O número, contudo, pode ser ainda maior. Segundo Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil, os dados de atendimento não incluem áreas irregulares. Ocupações, aglomerados habitacionais e comunidades costumam ficar de fora dos cálculos, excluindo uma parcela relevante da população.
A reportagem pediu à Prefeitura de São Paulo uma estimativa atualizada de quantas pessoas não têm acesso à coleta de esgoto na cidade, mas não teve resposta sobre esse questionamento.
O esgoto que até hoje é jogado nos rios da maior cidade do país é o mesmo que invade a casa das famílias mais pobres nas épocas de chuva. Na Vila Piracicaba, que fica ao lado de Chácara Três Meninas, o problema persiste há décadas.
Edvaldo de Araújo, 65, mora na comunidade há 52 anos e diz sofrer com as enchentes desde sempre. Para diminuir os prejuízos, ele precisou aterrar a casa para deixar o nível do piso dois metros mais alto que o rio.
O Tietê fica no quintal de Araújo, de onde é possível ver todo tipo de lixo passando, como capacetes de moto, sofá, televisão e tanque de lavar roupa.
“Até caminhão já desceu aí. Uns três caminhões já desceram o rio, inteiros, com pneu, baú e tudo”, diz o comerciante.
Sua casa é uma das que começaram a ser conectadas à rede de esgoto há poucos meses. No entanto, os relatos são que, por ora, a tubulação da rua joga os rejeitos numa galeria, que continuam indo parar direto no rio Tietê.
Ironicamente, Araújo mora a menos de 400 metros, em linha reta, de uma estação de tratamento de esgoto da Sabesp.
Em nota, a Sabesp disse estar dando andamento no programa Água Legal em Chácara Três Meninas e na Vila Piracicaba.
“A infraestrutura de abastecimento de água já foi totalmente implantada, beneficiando aproximadamente 2.300 residências nesta região. Em relação ao esgoto, as redes coletoras estão em fase de implantação e ficarão prontas nos próximos meses”, disse a concessionária, destacando que o lançamento de esgoto no rio Tietê é resultado de ligações irregulares, as quais serão eliminadas assim que as obras forem concluídas.
Também em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que, desde 2017, mais de 33 mil famílias que viviam em áreas de risco foram beneficiadas com obras de urbanização, implantação de redes de água e de coleta de esgoto, contenção e estabilização de encostas, criação de áreas de lazer, pavimentação, e abertura de ruas e vielas, entre outras intervenções.
Luana Pretto, do Trata Brasil, diz que alguns pontos ajudam a entender por que uma cidade tão rica como São Paulo continua com milhares de famílias vivendo em meio ao esgoto e sem saneamento.
O primeiro deles tem a ver com governança. “Historicamente, as concessionárias de saneamento não entravam onde não tinha regularização fundiária”, diz.
Segundo ela, havia um impasse entre Ministério Público e concessionárias para o fornecimento do serviço nesses locais, porque seria uma forma de “oficializar” áreas que estão em situação irregular.
“Antes, os funcionários ficavam receosos, com medo de uma ação civil pública ou algo que fosse ruim do ponto de vista de legalidade”, afirma.
Sobre isso, ela diz que o marco do saneamento básico trouxe avanços, e que hoje já é possível levar o serviço de água, coleta e tratamento de esgoto a partir do momento em que existe um plano de regularização fundiária.
Outro ponto que explica o problema em São Paulo é a questão técnica. “É mais difícil pensar em soluções do ponto de vista de esgotamento sanitário nessas áreas”, afirma.
Embora o tema seja complicado, Pretto diz que existe solução de engenharia para tudo. “A gente consegue pensar em solução, mesmo em áreas vulneráveis, o que precisa é ter a união de esforços do Ministério Público, concessionária e governos municipais e estaduais, todos querendo resolver a situação.”
SOFÁ DE CONCRETO PARA DRIBLAR PERDAS COM ENCHENTES
“Sabe o que eu acabei de fazer? Um sofá de cimento na cozinha, de tanto eu perder coisas.”
Essa foi a solução encontrada por Isabel, 76, para não ter que gastar mais com as enchentes frequentes que invadem sua casa.
Ela é moradora da Vila Aimoré, comunidade na zona leste de São Paulo. O bairro é separado da Vila Itaim por um córrego estreito, lotado de esgoto, que enche durante as chuvas e alaga as ruas dos dois bairros, onde moram cerca de 40 mil pessoas.
As casas que ficam na margem são as que mais sofrem. A reportagem esteve no local no dia seguinte a uma noite chuvosa em São Paulo, e constatou diversas casas com a água suja espalhada pelos cômodos.
A grande reclamação dos moradores é com um paredão que a prefeitura finalizou em 2024 na margem do rio. O objetivo seria evitar que as casas fossem invadidas pela água com as enchentes. No entanto, o muro é construído em cima de uma base de pedras, por onde a água passa quando o córrego sobe.
Maria Ivanize, 64, mora na Vila Aimoré há 36 anos e conta que, ao longo desse período, sua casa só tinha sido tomada pela água duas vezes. Isso antes da construção do muro. “Agora, depois desse serviço, quando chove, enche”, conta.
Nil, como é conhecida no bairro, divide o mesmo terreno com outras famílias, cujas casas também foram tomadas pela água e esgoto na noite anterior.
Maria do Socorro dos Anjos, 60, tentava calcular o prejuízo, sem muita esperança. Segundo ela, colchão, móveis e alguns eletrodomésticos teriam que ser jogados fora.
“A gente fica muito agoniado com tudo isso. Meu esposo é cadeirante, minha casa está cheia d’água. Vamos ter que limpar e sair, porque hoje ele tem médico. É luta.”
Segundo Anderson Nigri, presidente de uma ONG na região, os moradores pagam a tarifa da Sabesp, mas é como se estivessem “comprando o esgoto”, porque, na primeira chuva, os rejeitos entram dentro de suas casas.
Ele conta que a bomba elevatória que direciona o esgoto para a estação de tratamento está sempre passando por problemas. “Como ela vive mais quebrada que funcionando, você paga para tratar o que não é tratado”, diz.
Sem bombear para a estação, a rede enche e o esgoto sai por um desvio (o chamado “ladrão”), caindo direto no córrego Itaim, que desemboca no Tietê.
“O tratamento é duvidoso, não posso falar que não existe. Na hora que está funcionando, o esgoto é bombeado. Agora, quando está parado –como sempre está–, ele é desviado”, acrescenta Nigri.
Procurada, a Sabesp disse que as ruas onde a reportagem esteve possuem rede coletora de esgoto e têm seu efluente enviado para tratamento na estação de tratamento São Miguel.
Questionada sobre o paredão construído nas margens do córrego, a Prefeitura de São Paulo disse que foi firmado um convênio com o governo do estado para o reassentamento dos afetados pelo pôlder (muro de contenção).
“Na Vila Itaim, 15 famílias foram removidas, enquanto na Vila Aimoré foram nove famílias, em razão de risco. Todas foram inseridas no auxílio-aluguel e receberão o benefício até o atendimento definitivo com unidade habitacional”, disse a prefeitura, em nota.
Naquele mesmo dia em que moradores da Vila Aimoré contavam os prejuízos e tentavam secar os cômodos, a conta da Sabesp estava sendo entregue nas casas. A fatura de Nil veio em R$ 256,30, sendo R$ 128 só de esgoto.
|IDNews® | Folhapress | Beto Fortunato |Via NBR | Brasil